Mrs. e Mr. Magic: um regresso ao futuro
Devo prevenir que considero complexa a tarefa de traçar a fronteira entre tratar uma história e dar uma opinião. É que não raro o próprio processo de escrita passa-nos a perna, circunstância cujas razões permanecem, para mim, ainda ocultas e inexplicáveis; contudo, o decisivo, para o caso, é continuarmos empenhados em dar passos em frente, e é precisamente isso que – melhor ou pior – almejo.
Hoje falarei da Ticha Penicheiro. Melhor, e mais precisamente, partirei de um caso concreto que com a portuguesa se deu para levantar o véu à discussão de um problema que não raro pode ser atual nas vidas de alguns de nós: as vicissitudes da relação entre o ídolo e o fã. Devo também dizer que não houve – pelo menos do que conheço e à altura em que foram escritas as presentes frases -, durante os últimos dias, qualquer notícia decisiva em relação à ex-jogadora. E não há qualquer problema a esse respeito – pelo contrário. Estou convencido de que não necessitaremos de qualquer especial pretexto para ouvirmos quem merece ser ouvido.
Ora, imaginemos, para inaugurar o trilho a que ora nos propomos, a mais ou menos longínqua hipótese de termos oportunidade de conhecer pessoalmente o nosso ídolo.
Independentemente da área ou da obra a que nos entreguemos, é evidente que se poderá tratar de um momento importante, que mais ou menos vincadamente guardaremos na memória, e tudo isto apesar de na maior parte dos casos não passarmos, nós, de meros desconhecidos e de o ídolo constituir, para nós, uma estrela mais ou menos reluzente e remota. É que a admiração, aqui, costuma ser unívoca, como bem suspeitamos: nós endeusamos o ídolo, apesar de o ídolo não fazer sequer a mais pequena ideia acerca da nossa existência. É assim a boa vida dos anónimos.
Há, contudo – ou pode haver -, dias felizes. É que o ídolo antes, de, justamente, o ser, é, cumpre relembrar, um mero homem ou uma mera mulher, com duas pernas, dois braços e uma cabeça, que sente e pensa e que não vive – ou não deveria viver – exilado do mundo e da comunidade em que se insere, mergulhado no seu eventual radioso halo de prestígio. Bom, se o ídolo não poderá, como se quer significar, constituir somente um objeto de endeusamento – porque é, lá está e antes do mais, um mero homem ou uma mera mulher -, também o fã é, ainda que pontualmente se possa esquecer, um ser dotado de semelhantes carne e razão, com ambições e medos, desejos, forças e fraquezas. Assim, e da mesma forma que não deve o ídolo somente constituir objeto de idolatria, não me parece, da exata maneira, que deva o fã reduzir-se ao mister do endeusamento. É que, e como disse e julgo oportuno repetir, tratamos, nos dois casos, de seres dotados de uma mesma humanidade intrínseca, separados – no plano social – somente por uma pseudo-hierarquia, hierarquia essa que apesar de implicitamente aceite por ambas as partes, não passará, justamente, disso: uma pseudo-hierarquia, válida apenas e só no terreno onde se dá a relação entre o ídolo e o fã.
Mas não nos esqueçamos da busca que no parágrafo anterior anunciámos: os dias felizes, que apesar de não raro tardarem devem ser aguardados com a boa paciência que as complexas encruzilhadas da vida exigem. É que foi justamente num desses dias que Ticha Penicheiro – a “nossa” Ticha – teve oportunidade de se encontrar, pessoalmente, com Magic Johnson. Como com tantos outros sucedeu – e, quiçá, com todos nós – a portuguesa nutria especial admiração pelo histórico base que venceu cinco anéis ao serviço dos Los Angeles Lakers. Como a própria Ticha corrobora, muitos adeptos chegavam, até, a comparar o estilo de jogo de ambos: “Na altura, muita gente me comparava com o Magic, diziam que éramos parecidos a jogar.”
O encontro em causa não respeitou, todavia, e como suspeitamos, os trâmites da normal interação fã-ídolo. É que no caso a admiração e o pasmo não foram, como agora suspeitamos, unilaterais; Magic Jonhson não só sabia o nome da “nossa” Ticha como conhecia, também, a sua carreira e conquistas. No fim de contas, e apesar de para Ticha não ter na altura havido, eventualmente, a clarividência bastante para abarcar os grandes contornos daquele encontro – porque estava, lá está, focada na hipótese de poder privar com o seu ídolo de sempre – tratou-se, sem tirar nem pôr, de um encontro entre um dos melhores e uma das melhores basquetebolistas de sempre.
Foi justamente a este respeito que abordei a portuguesa, tentando perceber, também – ou sobretudo -, se com ela já lhe teria acontecido o inverso, ou seja, se alguma das jovens jogadoras – ou jogadores – que a procuraram no intuito de finalmente terem oportunidade de conhecer o respetivo ídolo teriam quedado exatamente como Ticha ficou, quando se deparou com Magic Johnson, frente a frente: boquiabertas, ao perceberem que não eram anónimas e que a portuguesa estava a par das suas conquistas em campo. E, ao perceber que sim, confirmou-se a minha suspeita: “Apesar de na altura muita gente comparar o meu estilo de jogo com o do Magic, fiquei muito surpreendida por ele me conhecer. Mas sim, já aconteceu algumas jogadoras virem falar comigo e eu já as conhecer. Não sei se algumas jogadoras olham para mim como eu olhava para o Magic. Pode ser uma boa comparação ou não. Teríamos de lhes perguntar (risos)”.
E como se não fosse isto o bastante, o próprio Magic Johnson foi, na altura, mais fundo do que a mais otimista perspetiva podia prever: disse a Ticha que o Magic era ele, e que ela seria a Lady Magic. “Sabia o meu nome, sabia como eu jogava. É um grande elogio vindo de uma grande pessoa e de um grande jogador”.
Quanto à minha pessoa tenho tido, a este respeito, algum azar, devo dizer; os meus ídolos não só não fazem sequer a mais pequena ideia de quem eu sou ou deixo de ser como também acontece que tenho gozado da pontaria bastante para os abordar em dias em que se encontram, digamos, menos alegres. Mas, senhoras e senhores, o que importa é prosseguir, como já bem sabemos, e esperar, precisamente, pelo nascer desses dias felizes.
Como prudentemente comecei por inaugurar é não raro árduo traçar uma fronteira estanque e rígida entre contar uma história e fazer uma análise crítica. É que a história é longa e se for boa não terá, as mais das vezes, um princípio e um fim diagnosticáveis. Seja como for, o essencial, a este respeito, ficou, julgo eu, contado, para quem não era, ainda, conhecedor: Ticha e Magic encontraram-se, a Mrs. e Mr. Magic. Percebemos, ao contrário do que quiçá fosse sensato prever, que não se tratou de um vulgar encontro entre ídolo e fã. Foi, antes, uma reunião entre ícones. Pode ser uma boa oportunidade para pensarmos na dinâmica que entre fã e ídolo se estabelece: uma complexa relação que deveria dar origem a uma espécie de simbiose mútua. É que na extensa e porosa teia desta vida não fazemos ideia de quando é que o fã se torna ídolo e o ídolo se tornará fã…